segunda-feira, 30 de outubro de 2006

Vida em brasas

Desde garotinho gostei do fogo, de brincar com fogo, e hoje acabei me queimando. Mas vou contar minha triste história desde o início.
Ainda posso me lembrar de quando, jovem e saudável, um primo me ofereceu um cigarro. Pela primeira vez fumei um cigarro. Já faz décadas, eu não tinha mais que 15 anos. Me lembro também da marca, era um Derby. Naquele tempo as pessoas podiam fumar quantos cigarros quisessem e em qualquer lugar. Não havia leis contra o poderoso cigarro.
Esse primo me ensinou a tragar e a soltar a fumaça com estilo, como via nos filmes, que naquela época também podiam exibir cenas de pessoas fumando. Na mesma noite, numa festa no interior, comprei o primeiro dos milhares de maços de cigarro que consumi em minha triste e vaga vida. Me lembro também da marca desse, era um Hollywood Menta. Como me arrependo desse ato... Fumei apenas alguns cigarros na noite. Era muito novo, e não podia deixar que os mais velhos me vissem fazendo aquilo.
No outro dia, pela manhã, peguei os cigarros que restaram e fui para o meio da plantação de milho que havia perto da casa de minha saudosa tia, onde eu estava dormindo naqueles dias. Sentei-me no chão e fumei um após ou outro, sem intervalos. Queria acabar logo com as evidências do crime que acabou com minha vida. Depois disso passei a fumar sempre em festas e bailes que ia. E o ato parecia cada vez mais prazeiroso.
Anos depois, ainda na juventude mudei-me para São Paulo em busca de trabalho como modelo. Quem me vê hoje sobre essa cama de hospital, com os pulmões artificiais me dando a vida que joguei fora aos poucos durante essas décadas que passaram, magro, sem cabelo... Ah! Que saudade do meu cabelo ruivo/loiro, loiro/ruivo que fazia sucesso com as moças na época. Quem me vê hoje nesse estado lastimável jamais acreditará que cheguei a trabalhar com minha imagem um dia. Naquele tempo ainda não se usavam esses modelos digitais de hoje, eram pessoas fotografadas que viviam de sua imagem. Eu era bem apessoado, grande, sadio, e com belos cabelos lisos e ruivos.
Essa carreira de modelo talvez tenha sido o que mais me aproximou do cigarro. A vida estressante pelas incertezas e a ociosidade eram os convites para uns traguinhos. Fumava um ou dois maços por dia e achava que era muito. Fumava Marlboro, L&M, Carlton, ou qualquer outro que pudesse pedir a alguém quando eu estivesse sem dinheiro. Economizava dinheiro com tudo, sacrificava os luxos da alimentação para não faltar o sagrado cigarro de cada dia.
O afastamento da família e dos amigos de minha terra natal e a tristeza da vida isolada que levava faziam com que o a amizade entre o inocente cigarro e eu se tornasse mais firme a cada dia.
Sempre à tira-colo para as sagradas ele estava lá:
Acordou? Fuma dois cigarros antes de sair da cama.
Bebeu cerveja? Fuma sem parar.
Ficou nervoso? Fuma.
Comeu algo? Fuma.
Vendo TV de madrugada? Fuma sem parar.
Bebeu café? Fuma.
Está numa festa? Fuma sem parar.
E por aí eu ia deixando o inocente cigarro tomar conta de mim. Por várias vezes pensei na hipótese de parar de fumar. Mas lembrava que nunca havia desejado viver muito, e por isso uns cigarrinhos não fariam muita diferença. Mas me enganei... Minha vida foi seguindo, sempre lado a lado com o cigarro.
Como me arrependo de ter pensado assim. Me casei com uma belíssima mulher, tive um casal de filhos, arranjei um bom emprego e a idéia de viver uma vida curta e intensa já não me agradava mais. Mas não conseguia mais abandonar meu mais fiel amigo, o cigarro. Queria viver pra criar e educar meus belos filhos. Queria cuidar de minha esposa quando essa ficasse idosa. Queria ter a vida eterna.
Porém fumava mais e mais. As leis do governo foram ficando cada vez mais rígidas. A propaganda foi definitivamente proibida, não se podia mais fumar em locais públicos, e posteriormente nem mesmo dentro de sua casa. O cigarro passou a ser considerado droga pesada e seu comércio foi rigorosamente proibido. Muitas manifestações foram feitas. Me lembro de sair correndo pelado no meio da multidão com vários cigarros, cachimbos e charutos acesos protestanto pelo meu direito de fazer do meu corpo o que eu quisesse.
Agora era dificil de manter o vício de fumar os meus 6 ou 8 maços diários do amigo da fumacinha. Ver a brasa queimando rente ao meu rosto era um prazer que ficou ainda mais prazeiroso devido à sua proibição. Agora tínhamos que traficar o cigarro. Houve uma inversão de papéis. A maconha que era vista como droga de marginais e era proibida na minha juventude, já podia ser comprada em saquinhos de 1Kg nos supermercados e degustada a vontade, mas o cigarro que por milênios foi apreciado por todas as classes da população agora era o inimigo número 1 da saúde mundial.
Lá pelos 35 anos de idade os avisos de meu castigo começaram a dar suas caras. A tosse que tomava conta de mim e me deixava sem ar quando o tempo esfriava agora era frequente. Os médicos me aconselharam a parar de vez de fumar. Mas não dei ouvidos. Algumas fagulhas da idéia de vida curta e intensa restavam em mim e me direcionavam ao vício sempre que possível. E assim fui piorando e sendo derrotado pelo falso amigo que me acompanhou durante todos esses anos.
Hoje meus filhos tentam esconder a dor de ver um pai sem pernas, sem cabelo, sem pulmões e que nao consegue mais falar... Um vegetal apodrecido desaparecendo. Aqui, com 46 anos, nessa cama de hospital deixo meus últimos lamentos através da leitura de pensamentos de uma vida vazia. Minha mulher me abandonou, minha filha caçula nunca mais veio me ver. Meu primogênito tenta vencer a tristeza e vem me visitar as vezes. Estou triste mais uma vez. Acabei com minha vida aos poucos sem perceber. Cigarro! Maldito cigarro! COmo pude ser tão cego e infantil a ponto de viver uma vida de falsos prazeres?
Nem ao menos posso puxar os tubos que bombeiam essa vida artificial para dentro de mim. Há dias perdi os ultimos movimentos que me restavam. Já nao existo. Alguém por favor desconecte os cabos!
Mas... Antes de fazer isso, poderia colocar um cigarro aceso em minha boca para um último adeus em meu fiel amigo?
Aqui jaz Cristiano Sarter. Quarta Feira, 27 de junho de 2029.


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Este é um dos textos que eu mais gosto.

3 comentários:

Anônimo disse...

curti ;]

Anônimo disse...

maaaaassa. é de quem?

Anônimo disse...

atualiza isso aquiii tio arthuuuuuuuuuur! ;~

(com voz de menina pequena, e ainda por cima, pidona. )